Fim da infância
Carlos Alberto di Franco
A sociedade assiste, atônita, a uma surpreendente patologia comportamental: o desaparecimento da infância e a supressão forçada da inocência. O fenômeno, estimulado por certos programas da televisão aberta, é preocupante.
A infância, infelizmente, está desaparecendo como fase natural da vida humana. Já não vemos crianças entretidas em brincadeiras que faziam parte da paisagem urbana das nossas cidades. A imagem, tão própria dessa fase da vida, foi sendo substituída pela cena de meninas de 4 anos dançando com gingados "eróticos" sobre o gargalo de uma garrafa.
Desenhos animados, marca de um passado não tão distante, foram sendo substituídos pelo requebro das popozudas, guindadas à condição de ídolos e tiazinhas das crianças e adolescentes. Com o apoio das próprias mães, entusiasmadas com a perspectiva de um bom cachê, inúmeras crianças estão sendo prematuramente condenadas a uma vida "adulta" e sórdida. Privadas da infância, elas estão se comportando, vestindo, consumindo e falando como adultos. A inocência infantil está sendo impiedosamente banida pela indústria do entretenimento.
Inúmeras causas têm sido levantadas para explicar o preocupante desaparecimento da natural fronteira entre a infância e a vida adulta. É difícil acreditar que apenas diferenças sociais, níveis de renda ou quaisquer explicações socioeconômicas sejam suficientes para entender essa deformação social. Na verdade, a formação por etapas, que só se adquire na família, nos livros e nas escolas, foi substituída pelo "aprendizado" instantâneo e moralmente insensível da televisão.
Atualmente, não obstante as queixas de inúmeros telespectadores, em qualquer horário as crianças têm acesso aos piores quadros de violência e degradação.
Hoje, graças ao impacto da TV, qualquer criança sabe mais sobre sexo, violência e aberrações do que qualquer adulto de um passado não tão remoto.
Não é preciso ser psicólogo para que se possa prever as distorções afetivas, psíquicas e emocionais dessa perversa iniciação precoce. Por isso, a multiplicação de descobertas de redes de pedofilia não deve surpreender ninguém. Trata-se das conseqüências criminosas da escalada de erotização infantil promovida por certa programação da TV. O veneno contra a infância vai sendo pouco a pouco instilado em alguns programas de auditório.
Assistimos a um verdadeiro aliciamento infantil.
As campanhas de prevenção da aids e da gravidez precoce batem de frente com inúmeros quadros da grade vespertina que fazem da exaltação das fantasias eróticas uma alavanca de audiência. A iniciação sexual precoce, o abuso sexual e a prostituição infantil, que, cada vez mais, ocupam espaço no nosso noticiário, são, insisto, o resultado da cultura da promiscuidade disseminada pela irresponsabilidade da mídia eletrônica.
É triste, para não dizer trágico, ver o Brasil ser citado como oásis seguro e excitante para os turistas que querem satisfazer suas taras e fantasias sexuais com crianças e adolescentes. Reportagens denunciando redes de prostituição infantil, algumas promovidas com a cumplicidade ou até mesmo com a participação de autoridades públicas, crescem à sombra da impunidade.
Sem nenhum moralismo, creio, caro leitor, que chegou a hora de uma guinada.
Fala-se muito - e com razão - da corrupção que castiga a sociedade. Mas já não é possível ocultar a raiz do câncer que, lentamente, vai tomando conta do organismo social: a crise ética e a falta de limites do negócio do entretenimento. É preciso repensar os caminhos da TV brasileira. O telespectador não quer, por óbvio, uma TV de água benta. Quer uma programação de qualidade. Mas a qualidade não se esgota na competência técnica. Exige também responsabilidade social.
A televisão brasileira precisa receber um choque de responsabilidade.
Artigo publicado em O Estado de São Paulo, junho de 2002 Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo para Editores e professor de Ética Jornalística, é representante da Faculdade de Comunicação da Universidade de Navarra no Brasil
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